quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Lucila quer ser modelo

Lucila aguarda o trem na estação Deus nos acuda. Quando os primeiros raios de sol rasgam o céu, revelam uma mulher muito magra e de pele branca. Carrega embaixo dos braços um currículo amassado. Está à procura de emprego. Já foi empregada doméstica, babá, garçonete e frentista. Agora, almeja ser modelo. A vaidade lhe escapa por completo. Tem unhas ruídas e manchas no rosto. Um dia vieram lhe falar que andava feito moça de passarela. Acreditou na conversa. Desde então, sai de casa bem cedo para ver se consegue algum desfile.
Uma fila de trabalhadores e desempregados está aposta na plataforma de embarque. É gente de todo tipo. Camelôs, estudantes e muitos desempregados. No meio da muldidão é possível identificar os que carregam sonhos e os que desistiram de sonhar. Quem carrega no rosto um ar de bravura continuam sonhando. Já os que andam de cabeça baixa, os deixaram escapar.
Lúcila sempre está de queixo levantado. É a primeira a avistar o trem. Os olhos de mel tem força e destroem muros. Prestes a embarcar disputa um espaço na porta do vagão. A porteira se abre. O empurra-empurra é grande. Não são animais que entram na locomotiva. São homens e mulheres que trocam braçadas para irem sentados durante a viagem ao centro de São Paulo. Lucila é lançada de um lado para o outro. Abusam da sua fragilidade. Tenta se equilibrar. Logo as cadeiras são ocupadas rapidamente. Sem alternativa, vai espremida, assim como ficam idosos e gestantes. Ninguém precisa segurar na barras de ferro. Se apoiom uns nos outros, formando escoras humanas.
Vendedores ambulantes sacam de suas bolsas cestas de doces. Logo, começam a fazer a sua propaganda: “Chocolate, bala, amendoim”. Na estação lata de sardinha, mais passageiros embarcam no trem. Lucíla começa a sentir um mal-estar. Respira com dificuldade. Na hora do desembarque, pede licença para as pessoas. Ninguém lhe dá ouvidos. Tenta furar o bloqueio humano a todo custo. É esmagada antre as costas dos passageiros. Desembarca no Brás. Procura se recompor. O suor escorre pela testa. Na rua Corre da Polícia, Lucila parece estar perdida. Olha as placas e fica na dúvida se deve entrar na avenida dos Mendigos ou na avenida da Fome. Lucila para em um bar. Pede meio dedo de café e um pão na chapa. Come com vontade. Paga a refeição com várias moedas de cinco misérias. Pára em uma banca de jornais e pede informações. Chega na Anorexia Models. Está contente. Faz um cadastro na recepção.
Dá em dinheiro cem misérias. Fica aguardando ser chamada para o teste de passarela. Está anciosa. Outras mulheres chegam. Uma delas senta ao seu lado e pergunta:
— Pronta para o sucesso?
— Acho que sim. E você?
— Meu bem, eu nasci pra ser estrela. Chega de esfregar chão!
— Eu também quero sair dessa vida.
— Como se chama?
— Lucila da Desgraça e você?
— Esmeraldo da Cruficicação.
— Vou ganhar muito dinheiro, Lucila.
— Tomará. Nós duas vamos ganhar bastante grana.
A recepcionista chama Lucila para o teste. Três velhas cafonas estão sentadas lado a lado em uma sala mal pintada e cheia de infiltrações. Uma velhota diz:
— Vamos lá minha filha. Mostre que sabe desfilar.
— Claro que mostro.
Lucila caminha toda torda. As pernas se cruzam feito bambú soprado pelo vento. O salto faz muito barulho na passarela de madeira. Da meia volta sem esbanjar charme. Outra velhota a interrompe:
— Tá bom minha filha. Já chega. Aguarde lá fora alguns minutos
Chamam Lucila e dizem que ela só serve para desfilar em quarto de motel. Ela não entende e pergunta:
— Como assim?
A terceira velhona responde:
— Temos trabalho para você na Augusta. Topa?
— Topo nada. Não sou mulher da vida. Quero desfilar feito modelo da “Escória Chícrete”.
As velhonas caem na gargalhada. Lucila cai em prantos. Sai em disparada. Pede o dinheiro de volta. Fica sem. Lucila chega tarde da noite em casa. Está com os pés doloridos. Liga a TV. Assisti no canal pouco ibope a um desfile. Não demora muito e adormece no sofá.

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